O método histórico-crítico é um método científico usado na interpretação do texto bíblico. A análise feita com esse método é diacrônica e se vale, para tanto, como nos diz Coelho (2014, p. 37), da “crítica textual, [d]a crítica literária, [d]a crítica ou história do processo da tradição e [d]a crítica ou história da redação. Sua estrutura compreende quatro etapas, correspondentes aos quatro métodos: (a) crítica textual (a reconstituição do texto original, hebraico e/ou grego); (b) crítica literária (a busca da identificação das fontes escritas); (c) a crítica ou história do processo da tradição (a investigação da pré-história dos textos na transmissão oral); e (d) crítica ou história da redação (a coleta e reelaboração do material)”. Como veremos mais adiante neste texto, tal método sofre críticas constantes desde de seu surgimento há mais de 250 anos, sobretudo de fundamentalistas. Talvez isso se dê pelo emprego da razão e da ciência para a interpretação da Bíblia através do método, que considera essa mesma Bíblia como seu objeto de estudo e não como a Palavra inerrante de Deus ou inspirada por ele. Contudo, esse não é o único método de interpretação da Bíblia, além dele existe o método estruturalista e outro método que está entre os dois anteriormente citados, a saber, o método histórico-gramatical (cf. COELHO, 2014, p. 33).
Durante muito tempo a interpretação da Bíblia foi monopólio da Igreja Católica. Para tal interpretação usava-se o método conhecido como “quadriga”, que ressaltava quatro sentidos para a leitura e compreensão do texto bíblico. Tais sentidos são: 1) o sentido histórico ou literal; 2) o sentido alegórico ou cristológico; 3) o sentido tropológico ou moral; 4) o sentido anagógico ou escatológico (cf. XAVIER, 2016, p. 2). Com a Reforma Protestante, em 1517, houve uma mudança radical para hermenêutica bíblica. Tal mudança consistia em abandonar a quadriga e enfatizar a interpretação literal da Bíblia. Como esclarece Xavier (2016, p. 3), para o reformador Martin Luther (Martinho Lutero), “a tarefa da exegese consiste na busca pelo sentido literal do texto bíblico”. E ainda segundo Xavier (2016, p. 3): “Além da ênfase no sentido literal, dois outros aspectos decorrem do pensamento de Lutero. O primeiro é o Sola Scriptura. Contudo, para encontrar o sentido literal não se depende mais de uma instância superior ou externa à Escritura. Ou seja, a tradição e o magistério eclesiástico não determinam mais a compreensão do texto bíblico. A Escritura é a única e última fonte de Revelação. O segundo aspecto é a compreensão de que a Bíblia interpreta a própria Bíblia. Isso quer dizer que uma passagem difícil deve ser interpretada à luz de passagens mais fáceis. Por ser considerada por si mesma muito clara, a Bíblia é o seu próprio intérprete”.
O Renascimento, o humanismo e a Reforma Protestante foram responsáveis por mudanças consideráveis na sociedade ocidental e também interferiram na maneira de se interpretar a Bíblia dando ênfase ao aspecto histórico, a gramática do texto e o contexto do seu surgimento, preparando, assim, o terreno para mudanças ainda mais radicais nesse campo que aconteceriam com o Iluminismo (cf. FILHO, 2008, p. 29, 30).
O Iluminismo foi um importante movimento filosófico e cultural surgido na Europa do século XVIII e que tinha como premissa a razão. Esse movimento, com seu lema “liberdade, igualdade e fraternidade”, influenciou também no processo de independência do continente Americano, na Inconfidência Mineira (1789) e na Conjuração Baiana (1798). Os iluministas questionavam o absolutismo monárquico e os dogmas e autoridade da religião. Para eles a razão deveria ser usada contra o obscurantismo, contra a superstição, seriam as luzes contra as trevas. Na origem do movimento iluminista está o desenvolvimento científico do século XVII, cujos expoentes são René Descartes e Isaac Newton. Se tudo deve ser investigado e passar pelo crivo da razão, a Bíblia também precisa ser examinada assim. E dessa forma, surgiu no seio do Iluminismo, e daquela que seria chamada mais tarde de teologia liberal, o método histórico-crítico. Contudo, em um primeiro momento, embora a interpretação da Bíblia fosse feita à luz dos critérios científicos do método histórico, os que utilizavam o tal método ainda acreditavam que a Bíblia era a verdade divina imutável (cf. FILHO, 2008, p. 33). Mas como nos diz Filho (2008, p. 35): “Com o desenvolvimento do método histórico-crítico, a Escritura passou a ser considerada fonte histórica, entendida segundo a forma de pensar de seus autores, no momento de sua composição, além da consideração pelo contexto vital do mundo em que o texto foi produzido. A dúvida sistemática sobre os relatos da Escritura predomina como pressuposto fundamental da crítica bíblica. Não se pode dar por supostas a verdade e a originalidade históricas do material bíblico, mas há necessidade de demonstrá-lo, mudando-se profundamente a relação entre o intérprete e o texto. O texto transforma-se em objeto, é estudado de forma científica e histórica. A Bíblia é objeto da estratégia de suspeita e dúvida, tão importante para a prática científica do Iluminismo”.
Embora Johann S. Semler (1725-1791) seja considerado o pai do método histórico-crítico, devido a sua proposta de uma hermenêutica radical que rompe de vez com a tradição ortodoxa (cf. XAVIER, 2016, p. 11), Volkmann (apud XAVIER, 2016, pp. 7-11) destaca cinco antecessores de Semler que teriam contribuído para a formação do referido método. São eles: 1) Matthias Flacius Illyricus (1520 – 1575), que contribuiu compreendendo o texto bíblico no sentido literal e fazendo uma interpretação desse texto com base nele mesmo; 2) Hugo Grotius (1583-1645), que conforme nos diz Xavier (2016, pp. 8, 9): “Em primeiro lugar, ele explica o texto bíblico, inserindo-o no contexto religioso da sua época. Em segundo lugar, Grotius foi o primeiro a considerar a Antigo Testamento e o Novo Testamento como duas grandezas históricas distintas. Em terceiro lugar, ele coloca o Antigo Testamento no âmbito da literatura e história universais, livrando-o da tutela do Novo Testamento. Em quarto lugar, Grotius afirma que o que importa na interpretação do Antigo Testamento é encontrar o sensus primarius (senso primordial). Isso só é possível quando o mesmo é interpretado livre da influência do Novo Testamento e da Dogmática. Em quinto lugar, ele levanta suspeitas históricas quanto a alguns textos da Escritura, como por exemplo, II Tessalonicenses e II Pedro”; 3) Richard Simon (1638-1712), que contribui com sua observação crítica dos escritos dos Pais da Igreja e dos manuscritos da Bíblia; 4) Johann A. Bengel (1687-1752), que contribuiu ao separar por “famílias” os manuscritos que “foram copiados ou remontam a um mesmo original. Além disso, Bengel estabeleceu uma regra de avaliação dos manuscritos. Esta regra é a seguinte: sobre a lição fácil deve prevalecer a mais difícil” (XAVIER, 2016, p. 10). Essa separação dos manuscritos em famílias “abriu a brecha para uma análise do texto do Novo Testamento com base nas fontes” (XAVIER, 2016, p. 10); 5) Johann J. Wettstein (1693-1754), que de acordo com Xavier (2016, p. 10), deu duas contribuições para a interpretação histórica do texto bíblico: “A primeira é que ele edita o Novo Testamento grego, conforme o textus receptus, mas com referências bem claras, no aparato, às variantes que ele considera originais. A segunda é que ele acrescenta um segundo aparato com paralelos da literatura grega e judaica. Esse acréscimo visa uma maior compreensão dos textos neotestamentários sobre o pano de fundo histórico.”
Desde de seu surgimento, o método histórico-crítico vem sendo atacado, principalmente por fundamentalistas. Aliás, o fundamentalismo surgiu como oposição ao modernismo e a teologia liberal, que como vimos adotou o referido método. Contudo, o termo “fundamentalista” aqui deve ser entendido no seu sentido histórico e não de forma pejorativa, como frequentemente se faz uso hoje em dia. Foi em 1910, na Universidade de Princeton, em New Jersey, Estados Unidos, que presbiterianos que formularam a doutrina da infalibilidade da Bíblia, inconformados com os rumos do protestantismo, apresentaram uma lista com os dogmas que consideravam imprescindível para sua concepção de cristianismo. Esses dogmas são: “(1) a infalibilidade das Escrituras; (2) o nascimento virginal de Jesus; (3) a remissão dos nossos pecados pela Crucifixão; (4) a ressurreição da carne e (5) a realidade objetiva dos milagres de Cristo” (ARMSTRONG, 2009, p. 237). Essa foi uma resposta clara à teologia liberal, que ao fazer uso do método histórico-crítico pôs em xeque todos esses dogmas tão caros ao cristianismo.
Contudo, a importância do método histórico-crítico para a história do cristianismo e para o estudo do Jesus histórico é atestada pelo avanço nesses dois campos de estudo ao longo de mais de 250 anos. Para tal, é importante saber o que de fato os autores da Bíblia queriam dizer ao escrever seus textos. Ehrman (2010) tratando do método histórico-crítico escreveu: “Essa visão prega que cada autor da Bíblia viveu em seu próprio lugar – e não nos nossos. Cada um deles tinha um conjunto de pressupostos culturais e religiosos do qual podemos não compartilhar. O método histórico-crítico tenta compreender o que cada autor poderia estar querendo dizer em seu contexto original. Segundo essa perspectiva, cada um deles deve poder ter sua própria voz. No Novo Testamento, o autor de Mateus não está dizendo a mesma coisa que Lucas. Marcos é diferente de João. Paulo pode não se entender com Tiago. O autor do Apocalipse parece ser diferente de todos os outros. E quando você joga o Antigo Testamento nessa mistura, as coisas ficam muito confusas. Os autores de Jó e Eclesiastes afirmam explicitamente que não há vida após a morte. O livro de Amós insiste em que o povo de Deus sofre porque Deus está punindo-o por seus pecados; o livro de Jó afirma que os inocentes podem sofrer; e o livro de Daniel indica que os inocentes de fato irão sofrer. Todos esses livros são diferentes, todos têm uma mensagem, e todas as mensagens merecem ser ouvidas”.
Confirmando a importância do referido método, Ehrman (2010) nos diz que o método é ensinado nos “principais seminários protestantes e que é a visão mais ou menos ‘ortodoxa’ entre estudiosos da Bíblia nos Estados Unidos e na Europa”. E para nossa surpresa, a mesma Princeton de onde saíram os fundamentalistas em 1910, já há várias décadas é um seminário “liberal”, como nos relata Ehrman (2010), que estudo lá no final da década de 1970.
O método histórico-crítico mostra uma série de incongruências na Bíblia e isso certamente preocupa quem enxerga a Bíblia como “Palavra de Deus”. Mas de qualquer forma, como vimos, esse é um método importante para quem quer estudar a Bíblia de forma científica. Por isso, decidi criar este blog e um blog sobre análise da Bíblia, que estará na Internet em breve, com o objetivo de apresentar os resultados obtidos com o uso do referido método.
Bibliografia
ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
COELHO, Lázara Divina. Os caminhos do método histórico-gramatical: uma perspectiva descritiva. 2014. 144f. Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia. Disponível em: http://tede2.pucgoias.edu.br:8080/handle/tede/873. Acesso em: 26 ago. 2020.
EHRMAN, Bart. D. Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi? Mais revelações inéditas sobre as contradições da Bíblia [livro eletrônico]. Rio de Janeiro: Ediouro, 2010.
FILHO, José Adriano. O método histórico-crítico e seu horizonte hermenêutico. Universidade Metodista de São Paulo: Estudos de Religião, v. 22, n. 35. Jun/dez 2008. Disponível em: https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/ER/article/view/171. Acesso em: 30 ago. 2020.
XAVIER, Luiz Felipe. O método histórico-crítico: origem, características e passos metódicos. Faculdade Batista de Minas Gerais: Revista Davar Polissêmica, v. 3, n. 1, 2012. Disponível em: http://periodicos.redebatista.edu.br/index.php/DP/article/view/84. Acesso em: 30 ago. 2020.