Há séculos alguns estudiosos afirmam que o Jesus histórico nunca existiu, que ele é apenas um mito criado e difundido pelos cristãos. Esses negacionistas da historicidade de Jesus, chamados por Bart D. Ehrman em sua obra Jesus existiu ou não? de miticistas, afirmam que não existem fontes confiáveis que atestam a existência de Jesus e que Jesus foi uma invenção dos cristãos com bases em mitos e deuses da Antiguidade. Na mesma obra, Ehrman mostra que existem sim fontes confiáveis que comprovam a existência do Jesus histórico e que os argumentos usados por esses miticistas são extremamente problemáticos.
Contudo, é importante destacar que o Jesus histórico difere muito do Jesus da teologia e só coincide em parte com o Jesus real. O Jesus da teologia é uma criação de teólogos e estudado por eles com metodologias e critérios próprios enquanto o Jesus histórico "é aquele que podemos recupera ou reconstruir usando as ferramentas científicas da moderna pesquisa histórica" (MEIER, 2003, p. 20). Uma das maiores obras modernas sobre o Jesus histórico é A busca do Jesus histórico, escrita pelo teólogo, filósofo e médico Albert Schweitzer. Ehrman (2014a, p. 21), ao refutar uma interpretação fora de contexto feita por miticistas sobre um trecho da obra de Schweitzer, escreve: "Para Schweitzer, o problema do Jesus histórico é que ele foi, na verdade, uma figura excessivamente histórica. Ou seja, Jesus foi uma pessoa tão enraizada em sua própria época e lugar - um judeu palestino do século I com uma compreensão judaica antiga do mundo, de Deus e da existência humana - que não é fácil traduzi-lo em linguagem moderna. O Jesus aclamado por pregadores e teólogos atuais não existiu. Esse Jesus em particular (ou as versões particulares dele) é um mito. Houve, porém, um Jesus histórico, que foi essencialmente um homem típico de sua época. E podemos saber como ele era".
Mas não só os cristãos criaram uma versão distorcida de Jesus, os judeus também o fizeram. Beatrice Bruteau (2003, apud VERMES, 1973, p. 17), citando um trecho de uma das obras de Geza Vermes na introdução de Jesus segundo o judaísmo, nos diz: "Sou simpática ao sentimento com o qual Geza Vermes encerra a introdução de seu livro Jesus, o Judeu: Se pudermos reconhecer que 'esse homem, distorcido pelo mito cristão tanto quanto pelo judaico, não era na verdade nem o Cristo da Igreja nem o apóstata e fantasma assustador da tradição popular judaica, já teremos dado os primeiros passos rumo ao resgate de uma dívida há muito contraída com ele'".
Embora os evangelhos apresentem como local de nascimento de Jesus a cidade de Belém, na Judeia, como maneira de afirmar que o nascimento dele seria o cumprimento de uma profecia de Miquéias (5:2), Jesus, provavelmente, nasceu na cidadezinha de Nazaré, na Galileia (cf. EHRMAN, 2010; VERMES, 2007, pp. 96, 97). Não sabemos a data exata do seu nascimento, porém, é certo que ele não se deu no ano 1, conforme afirmava um cálculo feito no séc. VI. Contudo, Vermes (2007, pp. 98-105) nos diz que há indícios nos evangelhos de Mateus (2:1, 19, 22) e de Lucas (1:5; 3:1, 2, 23) que combinados parecem apontar como data do nascimento de Jesus algum momento entre a primavera do ano 4 AEC e o ano 5 AEC. Os evangelhos atribuem um nascimento milagroso a Jesus e destacam sua missão salvífica, os evangelistas, assim como outros escritores bíblicos, não estavam preocupados com a precisão histórica de suas narrativas e sim com o conteúdo teológico delas.
Contudo, quem teria sido esse Jesus histórico? Para Bart D. Ehrman (2010), Jesus foi um pregador apocalíptico itinerante do interior da Galileia que passou a maior parte do seu ministério pregando aos judeus de sua terra natal. Ele acreditava que “a vinda do reino [de Deus] era iminente com o advento do Filho do Homem, e as pessoas precisavam se preparar” (EHRMAN, 2010), e pregava isso por meio de parábolas. Foi seguidor de João Batista (um profeta escatológico que pregava o arrependimento e o batismo) antes de se tornar pregador itinerante na Galileia rural. "Juntou discípulos ao seu redor e conquistou a reputação de curar enfermos e exorcizar demônios. Ao final de sua vida, provavelmente por volta de 30 EC, fez uma viagem a Jerusalém durante a celebração da Páscoa e despertou a oposição de líderes judaicos locais, que conspiraram para levá-lo ao julgamento de Pôncio Pilatos, que o condenou à crucificação por alegar ser o rei dos judeus" (EHRMAN, 2014a, p. 265). Já conforme Jonh Dominc Crossan, outro estudioso de renome do Jesus histórico, com base sobretudo no chamado Evangelho Q, uma fonte hipotética, que teria sido uma coleção de ditos e feitos de Jesus e que teria circulado de forma oral nas primeiras décadas do movimento de Jesus até ter sido posto por escrito em algum momento da década de 50 do primeiro séculos (momento em que os documentos mais antigos do chamado Novo Testamento, a saber, as cartas paulinas, também estavam começando a circular) e que foi usada por Mateus e Lucas na redação dos seus evangelhos, vê o Jesus histórico como um camponês judeu cínico* (cf. CROSSAN, 1995). Burton L. Mack, autor de O evangelho perdido: o Livro de Q e as origens cristianismo, via nos ditos de Jesus registrados no mesmo Evangelho Q um Jesus que teria sido um "mestre cínico"(MACK, 1994, p. 235). Escreve o autor:
"As sentenças mordazes de Jesus em Q¹ mostram que seus seguidores o viam como um sábio do tipo cínico. Os cínicos eram conhecidos por mendicância, pobreza voluntária, renúncia às necessidades básicas, rompimento dos laços de família, atitudes destemidas e despreocupadas e comportamento em público desagradável. Os temas ordinários do discurso cínico incluíam a crítica aso ricos, à pretensão e à hipocrisia, exatamente como em Q¹. E os cínicos se orientavam para tópicos do tipo indiferença às repreensões, não-retaliação e autenticidade no cumprimento de sua vocação, valores que estão na dianteira das instruções de Jesus em Q¹" (MACK, 1994, pp. 112-113).
Por seu turno, o professor de Ciências das Religião Richard A. Horsley considerando os “indícios” contidos em Q e em Marcos, como por exemplo as condenações proféticas de Jesus contra o Templo e contra os sumos sacerdotes, vê Jesus “como um profeta liderando um movimento de renovação de Israel” (HORSLEY, 2010, 107). De acordo com o autor:
"O lado construtivo do reino de Deus como renovação de Israel também comportava duas facetas. Jesus como profeta proclamou e estabeleceu a renovação divina do povo na promessa das bênçãos do reino e em curas e exorcismos dos efeitos debilitantes do imperialismo romano. Finalmente, em sua missão, que se voltava para as comunidades camponesas, Jesus proclamou uma ordem social alternativa de cooperação e justiça social livre de opressão" (HORSLEY, 2010, p. 15).
Seja como profeta apocalíptico, como camponês judeu cínico, como mestre cínico ou como um profeta reformador de Israel, a resistência não violenta de Jesus a opressão do Império romano e das elites judaicas aos camponeses é algo que os estudiosos citados acima concordam. Contudo, um outro estudioso discorda dessa resistência não violenta. Reza Aslan defendeu em seu polêmico livro intitulado Zelota: a vida e a época de Jesus de Nazaré, que o Jesus histórico teria feito parte de um movimento violento contra Roma e as elites judaicas ligadas a ela. Nessa perspectiva, Jesus teria sido um zelota, um revolucionário nacionalista judeu que estava disposto, para estabelecer o Reino de Deus, a pegar em armas numa luta contra os romanos. Essa tese é criticada por boa parte dos estudiosos do Jesus histórico que apontam várias inconsistências nela.
Desde sua morte até os dias atuais Jesus é visto por seus seguidores como Deus, mas conforme nos explica Ehrman (2014b, p. 173), Jesus não se apresentou em suas pregações como Deus, mas ele foi tornado Deus por seus discípulos depois de sua morte. Mais tarde isso se desdobrará na doutrina da Trindade, que foi aprovado não depois de muitas disputas teológicas, no século IV. Nas palavras de Ehrman (2014b, p. 173): "O que podemos saber com relativa certeza sobre Jesus é que seu ministério e proclamações públicas não enfocam sua divindade; de fato, não tinham absolutamente nada a ver com sua divindade. Eram sobre Deus. Sobre o reino que Deus traria, e sobre o Filho de Homem que em breve traria o julgamento à terra. Quando isso acontecesse, os ímpios seriam destruídos, e os justos seriam levados para o reino – um reino no qual não haveria mais dor, miséria ou sofrimento. Os doze discípulos de Jesus seriam governantes desse reino futuro, e Jesus governaria acima deles. Jesus nunca se declarou Deus. Ele acreditava e ensinou que era o futuro soberano do reino vindouro de Deus, o messias de Deus a ser revelado. Foi essa a mensagem que proferiu aos discípulos e, no fim, foi essa a mensagem que o levou à crucificação. Foi só depois, quando os discípulos acreditaram que seu mestre crucificado havia ressuscitado, que começaram a pensar que ele deveria, em algum sentido, ser Deus".
Porém, nem todos os cristãos acreditavam que Jesus era Deus. Os ebionitas, judeus-cristãos que defendiam a necessidade de os cristãos obedecerem às leis e os ritos judaicos, viam Jesus como messias e não como Deus. Os ebionitas também não acreditavam no nascimento virginal de Jesus.
Outro dado interessante nessa discussão sobre o Jesus histórico é o de que a imagem de Jesus reproduzida exaustivamente desde a Idade Média pela Igreja Católica é uma criação dessa mesma igreja. Esse Jesus é branco, de olhos azuis e cabelos loiros, ou seja, com feições europeias, muito diferente dos aspectos de um homem palestino do primeiro século. Em 2001, um britânico especialista forense em reconstruções faciais chamado Richard Neave, baseando-se em três crânios do primeiro século encontrados na mesma região em que Jesus viveu, fez uso do conhecimento cientifico na reconstrução da face de um judeu daquele período e lugar (cf. imagem que ilustra este post). O que nos mostra que o Jesus histórico seria muito diferente, também, fisionomicamente daquele criado pela Igreja, o Jesus teológico. Mas muitos outros cristãos vêem nessa imagem reconstruída de um possível Jesus histórico mais uma confirmação de que Jesus é o "servo sofredor" do texto de Isaías 53, pois, acreditam eles, conforme tal imagem e de acordo com a descrição de Isaías, Jesus "não tinha beleza nem esplendor que pudesse atrair nosso olhar, nem formosura capaz de nos deleitar" (v. 2). Os primeiros cristãos já haviam construído suas narrativas sobre Jesus com base no referido texto. Sobre isso nos diz Ehrman (2008, p. 77): "Não é por acaso que os relatos da crucificação do Novo Testamento soam tão parecidos com Isaías 53: os autores desses relatos estavam pensando no servo sofredor de Isaías enquanto escreviam seus relatos". Mas será que esse texto de Isaías é uma profecia sobre Jesus? Em primeiro lugar temos que registrar que o livro de Isaías não foi escrito por uma única pessoa em um determinado período, ele foi escrito, conforme os estudiosos já sabem há mais de cem anos, por três escritores em períodos diferentes da história de Israel. Isaías 53, por exemplo, foi escrito pelo "Segundo Isaías", provavelmente em meados do século VI AEC, quando o reino do sul (Judá) havia sido destruído pelos assírios e o povo levado cativo. Quanto a interpretação que o Segundo Isaías tinha sobre o sofrimento do povo de Israel, Ehrman (2008, pp. 72-73) escreveu: "O Segundo Isaías concorda com seus predecessores proféticos ao ver o sofrimento que tinha se abatido sobre o povo de Israel como uma punição por seus pecados contra Deus. De fato, Israel 'recebeu da mão do Senhor paga dobrada por todos os seus pecados' (40:2)". Contudo, "um ensinamento fundamental do Segundo Isaías, diferentemente daquele dos profetas anteriores à tragédia, é que, agora que Judá tinha pagado por seus pecados sendo punida, Deus iria se aplacar e perdoar seu povo, reconduzindo-o à terra prometida e começando um novo relacionamento com eles".
É nesse contexto histórico e com base na interpretação que o Segundo Isaías fez do sofrimento do povo de Israel que deve ser entendido o texto desse autor. Sendo assim, o "meu servo" (ou "servo sofredor", como ficou conhecido) do Segundo Isaías é o povo de Israel, os que foram levados para o exílio. Contudo, os cristãos interpretaram esse "servo sofredor" como sendo Jesus. Sobre isso nos diz Ehrman (2008, pp. 74-75): "Para compreender o Segundo Isaías é importante reconhecer que é explicitamente o povo de Israel, evidentemente aqueles levados para o exílio, aqueles chamados de 'meu servo' (41:8). Como o profeta diz posteriormente, 'Tu és meu servo Israel, aquele em quem me glorificarei' (49:3). A importância disso é que algumas das passagens do Segundo Isaías foram vistas pelos primeiros cristãos como se referindo a nenhum outro além do messias, Jesus, que se acreditava ter sofrido pelos outros, dando a redenção".
Outros indicativos de que o texto de Isaías 53 não se refere a Jesus são: a) o sofrimento do "servo" é algo que está no passado e não no futuro; b) o autor em momento algum menciona um messias em seu texto (cf. EHRMAN, 2008, p. 76). Ainda de acordo com Ehrman (2008, p. 76): "À luz desses pontos, é fácil ver por que, antes do cristianismo, nenhum intérprete judeu considerou que esta passagem [Isaías 53] indicava como seria o messias ou o que faria. O antigo judaísmo (antes do cristianismo) nunca teve uma ideia de que o messias iria sofrer pelos outros - por isso a enorme maioria de judeus rejeitou a ideia de que Jesus pudesse ser o messias".
Jesus não criou leis ou doutrinas para uma nova religião, mas comunicou sua interpretação das leis mosaicas. Ele não deixou nenhum escrito, as informações que temos sobre ele e sua mensagem vem de escritos de cristãos que não conviveram com ele, mas que recolheram e compilaram essas informações de fontes orais. A partir do século II, as discussões sobre quais desses textos deveriam ou não ser considerados de inspiração divina se intensificou e levou a formação do cânone neotestamentário, como veremos em outro momento.
*O movimento cínico está ligado a Diógenes de Sinope (400-325 AEC).
Bibliografia
ASLAN, Reza. Zelota: a vida e a época de Jesus de Nazaré. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
BÍBLIA – Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
BRUTEAU, Beatrice (org.). Jesus segundo o judaísmo: rabinos e estudiosos dialogam em nova perspectiva a respeito de um antigo irmão [livro eletrônico]. São Paulo: Paulus, 2003.
CROSSAN, John Dominic. Jesus: uma biografia revolucionária. Tradução: Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Imago, 1995. (Coleção Bereshit)
EHRMAN, Bart D. Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?: mais revelações inéditas
sobre as contradições da Bíblia [livro eletrônico]. Rio de Janeiro: Ediouro, 2010.
______________. Como Jesus se tornou Deus. São Paulo: Leya, 2014b.
______________. Jesus existiu ou não? Rio de Janeiro: Agir, 2014a.
______________. O problema com Deus: as respostas que a Bíblia não dá ao sofrimento. Rio de Janeiro: Agir, 2008.
HORSLEY, Richard A. Jesus e a espiral da violência: resistência judaica popular na Palestina Romana. Tradução: Monika Ottermann. São Paulo: Paulus, 2010. (Coleção Bíblia e Sociologia)
MACK, Burton L. O evangelho perdido: o Livro de Q e as origens cristianismo. Tradução: Sérgio Alcides. Rio de Janeiro: Imago, 1994. (Coleção Bereshit)
MEIER, John P. Um judeu marginal: repensando o Jesus histórico, vol. 3, livro 1; companheiros. Rio de Janeiro: Imago, 2003. (Coleção Bereshit).
VERMES, Geza. Natividade. Rio de Janeiro: Record, 2007.
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